cover.jpg

portadilla.jpg

 

 

Editado por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2004 Joanne Rock

© 2014 Harlequin Ibérica, S.A.

A noiva e o cavalheiro, n.º 117 - Junho 2014

Título original: The Wedding Knight

Publicado originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

Publicado em português em 2006

 

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), acontecimentos ou situações são pura coincidência.

® Harlequin e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

® e ™ são marcas registadas por Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas em que aparece ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-5205-1

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

Um

 

Primavera de 1250

 

Se Lucian Barret fosse um homem recto e temente a Deus teria tremido perante a ideia de raptar uma freira.

Felizmente, a sua fé em Deus tinha morrido há dois anos, no dia em que o homem que o tinha acolhido na infância falecera. De maneira que raptar Melissande Deverell não pressupunha qualquer dilema moral.

Lucian inspirou profundamente o ar limpo das montanhas e tirou um pedaço de pano branco dos alforges do seu cavalo para esconder a cara. Embora, com o tempo, fosse acabar por mostrar o rosto à sua refém, não queria que o reconhecesse de imediato.

As bondosas irmãs de Santa Úrsula não iriam aprovar os planos que Lucian tinha para Melissande.

Olhou através de uma das fendas do muro do convento para espiar a jovem freira. Depois de ter passado vários dias a estudar a rotina das habitantes de Santa Úrsula, Lucian tinha concentrado a sua atenção naquela mulher em particular.

Observou o seu perfil com intenção de confirmar se era realmente a mulher que procurava.

Porém, aquela jovem vestida com o hábito severo de freira não possuía qualquer semelhança com o diabrete de que ele se lembrava da infância.

A sua conduta irradiava plenitude e satisfação, como se realmente tivesse nascido para viver atrás daqueles muros silenciosos.

A Melissande Deverell de há dez anos tinha gritado até enrouquecer no dia em que os pais tinham anunciado que ia para um convento. Comentara-se que fora a chorar desde Inglaterra a França.

Todavia, Lucian conseguiu confirmar a sua identidade assim que o período de ócio chegou.

Lucian observou-a enquanto corria com três crianças pelos jardins ensolarados do convento. Aquela cena fê-lo recordar-se da sua própria infância, dos momentos que tinha partilhado com o irmão, Roarke, e com a vizinha, Melissande. Depois de ter passado a maior parte da tarde a ler, Melissande finalmente corria e saltava. Enquanto brincava com as crianças que tinha a seu cargo, Lucian voltou a ver a amiga despreocupada da infância.

Na altura em que Melissande se deitou na erva fresca, Lucian vislumbrou uma madeixa de cabelo vermelho debaixo da touca. O sorriso que brincava nos seus lábios falava de uma vida vibrante enclausurada naquele hábito austero.

Melissande.

A mulher que Roarke lhe tinha pedido que salvasse daquele convento escondido nos Alpes franceses era inconfundível. O rapto de Melissande serviria para pagar a dívida que Lucian tinha com o irmão.

Não iria decepcionar Roarke.

Melissande tinha amadurecido com os anos e se Lucian fosse o digno merecedor de perpetuar a linhagem dos Barret, saltaria de felicidade perante a possibilidade de que uma mulher como aquela lhe desse herdeiros.

Mas preferia deixar essa tarefa para o irmão. Lucian continuaria a pagar a sua penitência pela vida que tinha tirado com a sua espada. Apesar de todos qualificarem o sucedido como um acidente, ele continuava a culpar-se.

Um silêncio repentino invadiu o jardim.

Lucian voltou a desviar o olhar para o grupo feliz que brincava na erva e viu que Melissande olhava com receio para o muro, enquanto os pequenos continuavam a brincar. Melissande olhava intensamente para a fenda do muro, como se fosse capaz de adivinhar que atrás daquelas pedras espreitava um perigo para ela.

«Na verdade vou salvá-la», pensou Lucian, necessitando de certa paz mental para contrariar a imagem de plenitude que Melissande transmitia como freira.

Evidentemente assustada pelo movimento que tinha detectado atrás do muro, Melissande sussurrou alguma coisa às crianças, que correram para o interior do convento.

Tinha chegado o momento de agir.

 

 

Melissande Deverell conhecera muitos momentos de solidão e desamparo durante o seu exílio no convento. No entanto, até então, nunca tinha sentido medo.

O seu coração batia apressadamente, enquanto lutava com as saias do hábito depois de ter posto as crianças a salvo. De repente, sentiu que umas mãos a agarravam. Umas mãos grandes, umas mãos fortes...

Não!

Tentou gritar, mas uma das mãos tapou-lhe a boca e a outra deslizou até à sua barriga para a apertar contra o muro.

– Não vou magoar-te.

Melissande esperneou e tentou livrar-se do seu captor, perguntando-se como era possível que um corpo humano fosse tão forte e duro. Até mesmo no meio do pânico, foi capaz de agradecer a Deus por Andre, Emilia e Rafael estarem a salvo no interior do convento.

Ignorando os seus esforços, o homem que a retinha levantou-a nos braços como se fosse apenas um gato. Melissande observou em pânico que o seu captor abria o portão do convento com um pontapé e que deixava para trás a segurança de Santa Úrsula.

As suas crianças! Melissande ficou com o coração despedaçado ao pensar nas suas adoradas crianças que a esperavam no interior do convento. Lutou com todas as suas forças e tentou gritar, apesar da mão que sufocava os seus gritos.

Por culpa daqueles mesmos gritos que ecoavam no seu cérebro, não era capaz de ouvir as ordens que o seu raptor lhe sussurrava ao ouvido. A única coisa em que conseguia pensar era na dor e na desilusão que a sua ausência provocaria naqueles três pequenos órfãos, que finalmente tinham aprendido a amar e confiar outra vez.

Aquele louco que a levava destapou-lhe a boca. Aparentemente precisava desta para conseguir aquele assobio penetrante que quebrou o silêncio.

– Por favor! – o grito de Melissande ecoou com uma convicção surpreendente no meio do bosque.

Depois de hesitar um instante, a jovem começou a suplicar.

– Eu sou a responsável por aquelas três crianças. Não posso ir sem elas. Sou a única coisa estável que têm, a sua...

Um cavalo chegou a galopar do interior do bosque.

– Alguém se encarregará delas – sussurrou-lhe uma voz masculina ao ouvido.

Melissande sentiu a vibração daquela voz nas suas costas. Aquele homem tinha um ligeiro sotaque, como se fosse de uma terra estrangeira.

Melissande gritou. Foi um grito dilacerante que assustou os pássaros que descansavam nos ramos e fez com que o cavalo espezinhasse o chão, aborrecido.

Se as freiras reparassem na sua ausência, a abadessa poderia começar a procurá-la. Ao fim e ao cabo, a abadessa Helen comandava um modesto exército.

– Cala-te! – ordenou-lhe a voz.

Daquela vez, o homem não lhe tapou a boca, precisava da mão para segurar o cavalo. Contudo, antes que conseguisse gritar outra vez, Melissande encontrou-se no lombo do animal assustado. O livro que tinha na mão, até àquela altura completamente esquecido, caiu ao chão.

– O meu livro!

– Não vais poder segurar nele enquanto cavalgas – replicou o homem, guardando o livro no alforge.

– Não sei montar! – protestou Melissande, embora, instintivamente, tenha afundado as mãos na crina do animal assim que este começou a mexer-se.

– O raios é que não sabes! – resmungou a voz.

Surpreendida com aquelas palavras, Melissande arriscou-se a olhar para trás.

Uma mancha branca, recordou. Tinha visto aquele pano através de uma fenda do muro do convento.

Uns olhos cinzentos e de expressão severa olharam para ela. Uma grande cicatriz, desde a orelha à têmpora, dava àquele rosto um ar sinistro. A pele escura ao redor dos olhos e das mãos faziam lembrar um xeque do deserto.

Teria sido raptada por um guerreiro infiel? O medo apoderou-se da sua barriga. Tinha ouvido falar daqueles homens famintos de sangue.

Talvez o seu raptor tenha visto nos seus olhos a sua nova determinação em fugir, porque, de repente, montou no cavalo à velocidade de um piscar de olhos. Gritou ao animal, bateu nos seus flancos e começaram a cavalgar pelo bosque.

– Não! – gritou Melissande, enquanto se contorcia na sela, pensando que seria melhor cair daquele cavalo do que submeter-se aos infiéis.

Porém, uma mão puxou-a a uma velocidade surpreendente.

– Está quieta ou ainda te magoas!

Um braço musculado segurava-a contra a cota de malha que cobria o peito do seu raptor, que pousava as mãos no pequeno espaço que havia entre a sua cintura e as ancas.

Durante os dez anos que tinha passado no convento, pouco lhe tinham tocado. Ser segura daquela maneira era como uma lembrança cruel do seu desejo secreto de contacto humano.

– Estás a magoar-me – disse, quase sem respiração.

Para sua surpresa, o infiel suavizou imediatamente a pressão do braço, embora continuasse a certificar-se de que não ia cair ou saltar do cavalo enquanto galopavam.

Talvez pudesse apelar-lhe à razão. Se tinha diminuído a pressão, talvez não fosse impossível convencê-lo a libertá-la.

– Está a cometer um grave erro, senhor. Pertenço a uma ordem religiosa que...

– Eu sei quem és.

– Nesse caso, sabe que devo regressar ao claustro a que pertenço.

Respirou fundo, tentando dominar o seu nervosismo.

Melissande há anos que não falava tanto com um homem, excepto o padre. E, como é óbvio, o sacerdote nunca lhe tinha tocado daquela maneira.

– Não vais regressar!

Nunca mais ia voltar para casa? O aborrecimento surgiu no seu interior com a mesma intensidade que o medo que sentira anteriormente. Todavia, antes que conseguisse formular uma resposta que pusesse aquele infiel no seu lugar, este voltou a falar.

– Um dia vais agradecer-me por isto.

– Agradecer? – estava indignada. – Raptar uma noviça do convento?

– Então ainda não fizeste os votos para seres freira?

O laivo de esperança que a voz dele reflectia fez com que Melissande se tivesse arrependido de ainda não ter feito os votos.

– Fá-los-ei muito em breve.

– Não, senhora, não farás!

Segurou-a com mais força do que a estritamente necessária enquanto a paisagem passava pelos seus olhos. Melissande nunca tinha estado tão firmemente unida a outra pessoa, era como se tivessem sido esculpidos na mesma rocha, como se se tivessem transformado numa estátua viva.

Estavam, de facto, tão perto que Melissande não tinha de se voltar para ouvir as palavras dele.

– Sim, senhor, fá-lo-ei. A minha abadessa é uma das poucas que possui o seu próprio exército. Irá mandá-lo atrás de si e obrigá-lo-á a libertar-me.

– Pelo que sei, a abadessa conta com um pequeno grupo de homens armados para proteger o convento. Mas talvez saibas de alguma coisa que eu desconheço – as rugas que contornavam aqueles olhos aprofundaram-se, como se tivesse sorrido.

Aquele homem estava a par dos recursos da abadessa? Aquilo indicava que o seu rapto fora mais bem planeado do que ela tinha pensado.

A indignação fazia as suas faces arderem.

– Espera-lhe o fogo do Inferno, senhor, espero que tenha consciência disso. Isto que está a fazer vai negar-lhe o acesso ao Reino dos Céus para toda a eternidade.

– Nesse caso, acrescentarei o que estou a fazer à minha longa lista de pecados.

Dois

 

Depois daquela declaração de Lucian, fez-se silêncio. Provavelmente, Melissande estava tão chocada que não era capaz de pronunciar uma palavra.

Óptimo.

A última coisa que Lucian precisava era de alguém a fazer perguntas sobre o seu passado. Era preferível que Melissande se sentisse suficientemente intimidada para o deixar em paz até chegar o momento lhe mostrar o seu rosto.

Embora Melissande permanecesse em silêncio e aparentemente tranquila, Lucian sentia a tensão que aquele corpo esbelto emitia. A sua postura tensa recordava-lhe o medo que com certeza se estava a esforçar por esconder.

Estava assustada.

Por um instante, o arrependimento apoderou-se da sua consciência, ressuscitando uma empatia que julgava morta há muitos anos. Parecia-lhe cruel permitir que Melissande sofresse, pensando que era um desconhecido com intenções perversas. Devia revelar a sua identidade para a tranquilizar. Assim que soubesse quem a raptara e qual o propósito, talvez se submetesse voluntariamente à sua protecção.

Mesmo assim, Lucian esperou.

Afastar-se de Santa Úrsula era imprescindível para o sucesso da sua missão. A poderosa abadessa não hesitaria em mandar os seus homens procurar Melissande.

Se Lucian queria conservar a sua refém, tinha de se afastar dali rapidamente. Isso significava que Melissande teria de continuar a ignorar a sua identidade.

Além disso, outra parte do seu cérebro recordou-lhe que, assim que soubesse quem era, ele não teria porque continuar a segurá-la daquela maneira. Contudo, o facto de o saber não deveria incomodá-lo. Porém, sentia-se incomodado. Ao fim e ao cabo, Melissande ia ser mulher do seu irmão e não sua.

Todavia, era preciso estar morto para não reparar no esbelto corpo que as suas mãos sentiam debaixo do hábito.

Ele era um homem condenado por muitas razões. Desejar a mulher destinada a outro homem seria uma transgressão pequena, comparada com os seus outros pecados.

Como reagiria Melissande quando lhe revelasse o seu nome? Será que ela, uma pessoa tão pura e sem mácula, se aperceberia da obscuridade da sua alma?

Lucian não pretendia ser o Lucian Barret que Melissande conhecera. Quando lhe confessasse a sua verdadeira identidade, Melissande iria sentir-se desiludida pelas mudanças severas que se operaram nele. Provavelmente iria perguntar-se o que teria transformado o menino tranquilo no homem frio e severo. E, pior do que tudo isso, iria ter pena.

Isso era algo que Lucian não conseguiria suportar.

A juventude e a inocência de Melissande faziam-no pensar na vida que poderia ter se a sua espada não se tivesse atravessado no caminho do seu pai adoptivo, Osbern Fitzhugh. Talvez Lucian estivesse a raptar uma esposa como Melissande para ele e não para o irmão.

Amaldiçoando os seus pensamentos estúpidos, Lucian afastou da sua mente qualquer ideia relacionada com casamento e com Melissande. Nada podia alterar o facto de que, no calor de uma discussão, tivesse levantado a mão a um homem que gostava como se fosse seu pai. Nada podia apagar os pecados de Lucian, nem apagar a dívida que tinha com o seu irmão mais novo por ter encoberto o seu segredo mais grave.

Por enquanto, aquilo que tinha a fazer era levar a sua prisioneira para Inglaterra. Quanto mais depressa entregasse Melissande ao homem que a esperava, mais depressa poderia regressar à sua penitência e à violência da guerra.

 

 

O sol escondia-se cedo naquela região montanhosa e cheia de bosques, deixando à frente deles um caminho cheio de perigos. Cavalgavam entre um vasto afloramento de rochas e um precipício que parecia não ter fim.

O corpo dorido de Melissande e a sua pele fria imploravam por descanso. Doíam-lhe as costas e, embora não pudesse fazer nada com o braço que lhe apertava a cintura, tinha descoberto que podia evitar um contacto mais íntimo com aquele homem de olhos prateados se permanecesse com as costas direitas.

No entanto, apesar de todos os seus esforços para evitar o seu contacto, não podia fugir ao toque das suas coxas fortes nas suas pernas enquanto cavalgavam. O couro das calças que lhe protegiam as pernas tocava na lã do seu hábito de uma forma enervante.

Subitamente, o infiel parou o cavalo, fazendo com que Melissande caísse bruscamente contra ele.

Num abrir e fechar de olhos, endireitou-a na sela, aumentando assim a distância que havia entre eles, como se ele a desejasse tanto como ela. Porém, não mostrou qualquer vontade de desmontar. Pelo contrário, levantou a cabeça para o vento, como se fosse um animal a farejar o perigo antes da sua chegada.

– Não estamos sozinhos, minha senhora – embora sussurrasse, Melissande conseguia compreender perfeitamente o que dizia.

O caminho que atravessavam naquele momento era somente utilizado por alguns viajantes a cavalo. Melissande já tinha renunciado à esperança de se cruzarem com alguém. Todavia, ouviu à distância o barulho de cascos.

Alguém vinha em seu resgate.

Abriu a boca para gritar. No entanto, a mão do seu raptor amorteceu o seu grito.

– Não tens de gritar, Melissande, confia em mim.

Ao fim de uns segundos de ter sido pronunciado, o som do seu nome penetrou no seu cérebro. Conhecia-a.

Com muito cuidado, voltou-se, levantou os olhos para o seu raptor e observou fascinada enquanto este descobria a cara.

– Sou teu amigo.

As suas feições pareciam as de um homem europeu e, de algum modo, familiares. Tinha o cabelo tão escuro como o de qualquer infiel. Contudo, o comprimento era idêntico ao usado pelos homens europeus.

– Sou o teu antigo vizinho.

Olhou para ela com aqueles olhos cinzentos e intensos. Os traços mais duros do seu rosto e a inteligência serena do seu olhar apresentavam uma familiaridade inquietante.

Lucian Barret.

Reconheceu-o no instante em que outros cavaleiros apareceram. Embora Melissande não os tenha visto, os seus sentidos alertaram-na da presença deles, enquanto contemplava aniquilada aquele que fora um amigo de infância.

Um rapaz que noutros tempo considerara um herói.

O seu alívio foi substituído rapidamente pela fúria. Como se atrevia a raptá-la daquela maneira?

Os cavaleiros pararam à frente deles. Lucian tirou a mão da boca de Melissande. O toque daquela mão era agora mais íntimo para Melissande, pois conhecida a identidade do seu raptor.

Embora estivesse furiosa, a curiosidade forçou-a a virar-se para os recém-chegados.

– Boa noite, cavaleiros!

Melissande reparou que ambos tinham uma cruz e a aparência cansada de alguém que está há muito tempo a viajar. Tinham a barba suja e descuidada e os escudos sem brilho por falta de cuidados.

– Boa noite, senhor – o primeiro cavaleiro dirigiu as palavras a Lucian e depois voltou-se para Melissande. Ao reparar no hábito, inclinou a cabeça mais profundamente, – e a você, irmã.

Aquela era a sua oportunidade, a única coisa que tinha a fazer era dizer alguma coisa. Condenar o seu raptor, proclamar a sua condição de refém.

No entanto, apesar da sua aparência respeitável, os homens olharam para ela com um atrevimento inquietante, como se estivessem dispostos a seduzi-la à primeira oportunidade.

Nunca, durante todos os anos que estivera em Santa Úrsula, Melissande conhecera um cavaleiro que merecesse a sua admiração. Embora fosse verdade que à mesa do convento nunca faziam referência à sua conhecida sede de sangue, costumavam vangloriar-se das suas proezas no campo de batalha. Eram todos homens incultos e sem maneiras.

Melissande tinha perfeita consciência das suas atitudes obscenas. Porém, nenhum deles se atrevia a cobiçar uma freira. Aparentemente, os cavaleiros eram mais ousados fora das paredes do convento.

Melissande assentiu como reconhecimento à sua saudação e decidiu estar calada até decidir qual seria a melhor maneira de agir.

– Vocês vão para Acre? – perguntou Lucian, com uma naturalidade aparente. No entanto, Melissande sentia a tensão do seu corpo. As coxas que estavam encostadas às suas pernas tinham deixado de ser pedras rígidas. Saber que aquela masculinidade pertencia a Lucian Barret fê-la sentir um calor agradável.

– Não, vamos para além-mar – respondeu o primeiro homem em francês.

O segundo não afastava os olhos de Melissande.

Melissande ignorou a estranha resposta do seu corpo à proximidade de Lucian para analisar a sua própria situação. A admiração silenciosa do Cruzado apagou toda a esperança de pedir ajuda àqueles desconhecidos. Na sua situação, o mau conhecido parecia muito melhor do que o bom por conhecer.

Mesmo no caso de aquele mau conhecido já estar a provocar um verdadeiro inferno no seu interior. Melissande inclinou-se ligeiramente para a frente, tentando aumentar o espaço entre ela e Lucian.

– O vosso rei precisa verdadeiramente de vós – disse Lucian, fazendo mais pressão na cintura de Melissande, antes que esta pudesse afastar-se. – As guerras deles não estão a correr da melhor maneira.

Enquanto o crepúsculo ia caindo, os dois homens falavam de batalhas longínquas e do cativeiro recente do rei de França nas mãos dos infiéis. Os lugares exóticos e longínquos de que falavam não significavam muito para Melissande, embora no trabalho como copista na abadia tivesse lido muitos textos orientais. No entanto, algo começava a ficar claro naquela conversa: o próprio Lucian fora um Cruzado.

Uma coisa que não o tornava mais recomendável aos olhos de Melissande. De facto, fazia os seus receios aumentarem. Todavia, mesmo assim, continuava a tratar-se de Lucian Barret. Pelo amor de Santa Úrsula, com certeza que tinha uma razão para a raptar. Talvez algo relacionado com a família. Assim que lhe explicasse como se sentia parte integrante do convento, iria devolvê-la ao seu lugar. Lucian sempre fora uma pessoa honorável, até mesmo quando era muito jovem.

Com uma vénia respeitosa, o primeiro cavaleiro esporeou o seu cavalo para se encaminhar para a escuridão do bosque.

– Boa viagem, senhor.

– Boa viagem – respondeu Lucian, descendo o olhar para Melissande, agora que o perigo tinha diminuído. Aqueles olhos frios e distantes pareciam proibir as perguntas que Melissande não tinha sequer formulado e fizeram-na estremecer devido à sua falta de calor humano.

– Lu…Lucian? – parecia-lhe estranho ter medo de um velho amigo, embora a raiva que sentia pelo que ele fizera ainda lhe fizesse ferver o sangue.

– Precisamos de avançar um pouco mais, Melissande – o laconismo da sua voz acabou com toda a esperança de uma interacção posterior. – Depois falamos!

Em circunstâncias normais, Melissande não se teria submetido a uma ordem como aquela, especialmente vinda de um homem que a tinha raptado e mantido intencionalmente a sua identidade em segredo.

Contudo, naquele momento tinha tanto frio e estava tão desconfortável que lhe custava pensar noutra coisa que não fosse no calor do fogo e sentar-se em qualquer parte que não fosse a garupa de um cavalo.

Chegaram a uma casa abandonada situada no meio de nenhures, rodeados por uma escuridão assustadora. O sangue parecia estar a congelar-lhe nas veias e Melissande sabia que não seria capaz de pregar olho naquela choça com aquelas correntes de ar. Quando Lucian a ajudou a desmontar, Melissande caiu esgotada nos braços dele.

– Sentes-te mal? – perguntou Lucian, enquanto a levava para dentro da casa.

– Acho que só estou cansada – não tinha de mencionar a sua propensão para pneumonias. Os Invernos duros dos Alpes tinham-lhe provocado mais crises do que aquelas de que se lembrava.

Lucian olhou para ela com uma expressão céptica enquanto se sentava num banco, ao lado de um buraco cavado para o fogo na única divisão que havia.

– E dorida. Há muitos anos que não montava a cavalo.

– Daqui a pouco começarás a sentir o calor – prometeu Lucian, embora Melissande mal o tivesse ouvido, pois a fadiga não demorou muito a apoderar-se dela.

Só se apercebeu de que tinha adormecido quando acordou pouco depois.

Fiel à sua palavra, Lucian fizera uma fogueira para Melissande enquanto esta dormia. Umas mantas de lã grossa cobriam o seu corpo e por baixo da sua cabeça tinha posto um pano branco para que a lã grossa não lhe arranhasse o rosto.

Melissande acariciou o pano e apercebeu-se de que era o mesmo que tinha escondido o rosto de Lucian quando a raptara do convento.

Os cuidados de Lucian aliviaram o seu espírito.

Levantou os olhos para ele, que permanecia sentado a uns metros dela. Melissande viu-o desdobrar um saco de linho e tirar do seu interior um pão, um pedaço de queijo e um odre.

– A minha família pediu-te que me viesses buscar? – a sua voz estava rouca e pastosa por causa de ter acabado de acordar.

Lucian ficou a olhar fixamente para ela, provocando nela uma sensação curiosa ligeiramente parecida com vergonha, embora sem chegar totalmente a sê-lo. Ao fim e ao cabo, aquele era Lucian.

Melissande nunca tinha sentido vergonha com aquele menino que lhe tinha ensinado a pescar e que nunca lhe puxava as tranças. Embora o Lucian que tinha à frente fosse muito maior e muito mais ameaçador do que aquele menino fracote que conhecera há anos.

– Bebe um pouco disto – empurrou o odre na direcção dela.

Melissande abanou a cabeça, decidida a conhecer o mais depressa possível os motivos do seu sequestro. Tinha de haver alguma razão vital para que Lucian lhe tivesse pregado aquele susto de morte.

– Aconteceu alguma coisa a alguma das minhas irmãs? Estão...?

As outras filhas dos Deverell tinham-se casado há muito tempo atrás. Só a mais nova fora destinada à vida do convento. Talvez alguma delas tivesse ficado doente ou tivesse tido algum problema durante o parto...

– Não sei de nada sobre a situação da tua família desde que os teus pais morreram – começou a cortar o queijo em fatias mais pequenas, como se não houvesse uma mulher atenta a cada uma das suas palavras, esperando por saber o destino que a esperava por estar nas suas mãos.

Melissande esforçava-se por manter a calma.

– Então porque...?

– Come, Melissande! Depois explico-te tudo.

Melissande partiu um pedaço de pão e levou-o à boca, estava demasiado cansada para o contrariar.

Lucian respirou fundo e levantou o odre.

– Salvei-te de passares a vida no convento para que possas casar-te com o homem que amas.

Salvar? Melissande tentou não ceder ao pânico enquanto apertava a manta que cobria os seus ombros e observava Lucian a beber do odre. Os músculos da sua garganta contraíam-se a um ritmo intrigante enquanto engolia. Melissande ficou fascinada com aquela imagem.

Um homem?!

– Quem é esse homem?

Lucian arqueou uma das suas sobrancelhas escuras perante a ignorância dela.

– Já te esqueceste do homem que dizias que ias amar até ao teu último suspiro?

Melissande sentiu que o calor fluía até às suas faces ao recordar-se da cena terrível que tinha feito no dia em que tinha partido para o convento. Tinha gritado como uma louca que ela não queria ser freira, que regressaria a casa e... que amaria Roarke Barret até ao dia da sua morte.

– Roarke?

Lucian quase sorriu. A diversão fez tremer os seus lábios antes que o seu rosto voltasse a ficar sério.

– Exacto, Roarke.

– Percorreste meia Europa e atravessaste os Alpes para me levares até Roarke Barret?

– Espero que estejas feliz – conseguiu dizer Lucian, enquanto comia uma maçã.

Uma vez satisfeita a sua curiosidade, Melissande recuperou a prudência. Tirou-lhe a fruta da mão.

– Não, não estou feliz, senhor, e espero que me leves de volta à minha abadia ao amanhecer.

Só o crepitar do fogo quebrava o silêncio da noite.

– Não queres casar-te com Roarke? – o seu tom de voz indicava que estava sinceramente surpreendido.

– Claro que não!

Ao reparar na confusão que havia no seu olhar, Melissande suspirou.

– Quantas coisas querias aos oito anos que agora, como homem adulto, já não queres nem precisas?

– Nenhuma – recuperou a maçã e devorou quase metade de uma só dentada.

Ao recordar como Lucian era sério em criança, Melissande compreendeu que, provavelmente, tinha razão.

– Bom, tu não és muito normal. Mas a maioria das pessoas tem sonhos impossíveis na infância.

– Os teus sonhos não são impossíveis.

– Já não é meu sonho! – Melissande ouviu a sua voz ecoar no interior da casa a um volume satisfatório. Quando tinha levantado a voz pela última vez? – Será que não te apercebes? Eu sou feliz no convento, Lucian. Estou encarregada de cuidar dos órfãos que chegam à abadia. Leio livros que muito poucas pessoas do ocidente poderão pôr os olhos em cima. Tenho uma vida bem-aventurada e feliz!

– Bem-aventurada e feliz?

– Sim, bem-aventurada e feliz.

Nos recantos mais secretos do seu coração, Melissande sabia que estava a exagerar a verdade. Porém, adorava Santa Úrsula e não queria depender de um cavaleiro que passaria dez meses por ano a lutar e a obrigaria a preparar os seus filhos para a mesma profissão perigosa.

– Mulher volúvel.

– Perdão? – Melissande não podia ter ouvido correctamente.

Lucian fulminou-a com o olhar.

– És uma mulher volúvel. Primeiro declaras o teu amor por Roarke e comprometes-te a amá-lo para sempre e depois decides que já não o amas e que preferes viver no convento.

– Tinha oito anos!

– Idade suficiente.

Estaria realmente a falar a sério?

– Posso assegurar-te que é bastante normal as crianças mudarem de gostos quando crescem.

– Posso assegurar-te com a mesma autoridade que há pessoas que conservam os mesmos gostos durante toda a vida.

Melissande corou, embora não soubesse a razão. As palavras dele confundiam-na de uma maneira que não conseguia compreender.

– Lamento que tenhas mudado de opinião, Melissande. A questão é que quero levar-te de volta para Inglaterra para que te cases com Roarke.

– Não irei para Inglaterra e não tenciono casar-me com ninguém – mas pela atenção que Lucian parecia estar a prestar-lhe, poderia ter gritado aquelas mesmas palavras ao vento dos Alpes.

– Ah! É possível que hoje não queiras casar-te. Mas quem sabe se amanhã não irás querer? – passou a mão pelo cabelo. – Tenho a esperança de que a tua natureza volúvel jogue a meu favor quando chegarmos a casa.

Santo Deus! Estava a falar a sério. O pânico apoderou-se dela.

– Lucian, não posso ir contigo, nem penso fazê-lo.

– Pois irás! Prometi a Roarke que chegaríamos a Inglaterra em meados do Verão.

– Mas...

– Cumpro sempre a minha palavra – um laivo de orgulho fundiu-se com o tom de advertência da sua voz.

Melissande suportou o seu olhar, não sentia a menor empatia pelo homem que estava sentado à sua frente. Lucian Barret, que só se parecia com a criança que era na sua seriedade e na sua óbvia inteligência, tinha mudado drasticamente durante os últimos dez anos.

O cabelo preto azeviche que costumava ter extremamente curto, naquele momento chegava ao pescoço. Os traços duros do seu rosto pareciam ainda mais duros agora que a idade apagara os vestígios da infância. E, é claro, o seu corpo de guerreiro recordava muito pouco o do jovem desajeitado de que ela se lembrava. A escuridão invadia todos aqueles traços dos quais Melissande conseguia arrancar sorrisos noutros tempos. Naquele momento, Lucian tentava manter a distância como se receasse que, ao mostrar-se demasiado amistoso, pudesse acabar com a sua determinação.

Uma determinação que a enervava. A crueldade espreitava por trás das suas palavras. Não estava surpreendida com isso: era um guerreiro e faria o que fosse necessário para a levar de volta para Inglaterra.

No entanto, Melissande não iria permitir que levasse a cabo aquele plano com o qual pretendia «salvá-la».

Analisou o seu inimigo enquanto este guardava as sobras do jantar, perguntando-se qual seria a melhor maneira de atacar. Sem demasiadas esperanças, tentou apelar pela última vez ao coração que Lucian parecia não ter.

– Há três crianças que dependem dos meus cuidados.

– E também uma abadia cheia de freiras que podem cuidar delas – não se incomodou a olhar na sua direcção. A sua armadura caiu ao chão, provocando um ruído metálico.

Dormiria com a cota de malha?, perguntou-se Melissande.

Aquela proximidade afligia-a. Contudo, a sua preocupação principal continuavam a ser as crianças, e não a proximidade pouco ortodoxa de Lucian.

– Tenho de estar de volta amanhã de manhã – informou Melissande, disposta a regressar com ele ou sem ele.

– Vai dormir, Mel! – ordenou Lucian, com um bocejo.

Embora Lucian tivesse utilizado aquele diminutivo por hábito, aquilo fê-la lembrar-se dos pequenos que tinha a seu cargo, que costumavam chamá-la Mel ou Anjo, ou então aquela combinação ridícula inventada por Rafael, Anjomel.

Sentiu um aperto no coração. Os seus braços desejavam apertar as suas crianças. Poderia uma mãe amar mais os seus filhos?

– Não queres uma manta? – perguntou a Lucian, ao dar-se conta de que este pretendia dormir sobre o chão duro, sem sequer tapar-se.

– Não.

Mesmo assim, a sua natureza maternal obrigou-a a prescindir de uma das mantas e a lançá-la na sua direcção.

Lucian afastou-a com um gesto de impaciência.

– Disse que não! – depois, como se ficasse, de repente, consciente das suas maneiras inadequadas, acrescentou, tenso: – Não, obrigado.

Melissande observou-o a fechar os olhos e a apoiar a cabeça num braço que utilizava como se fosse uma almofada. Devia estar extraordinariamente desconfortável. Porém, como era óbvio, ela não fez qualquer esforço para o aliviar. No entanto, deixou a manta que Lucian tinha rejeitado entre eles, só para o caso de mudar de opinião.

Enquanto esperava que a respiração de Lucian lhe indicasse que tinha adormecido, perguntava-se o que teria acontecido a Lucian para se transformar naquele homem frio e severo.

Rezou para conseguir ser sigilosa durante a sua fuga, dado que não tinha a menor dúvida de que a cólera de Lucian seria muita quando descobrisse, na manhã seguinte, que tinha desaparecido.